domingo, 4 de maio de 2008

Epifanias cotidianas.


Soletrei todos os meus sentidos. Uns como preferenciais, outros na contramão.
Foi a terceira vez no dia que Edgar me perguntou se estava tudo bem. Bem, tudo nunca está, mas para abreviar uma longa discussão respondi que sim.
Depois de ter escovado todos os dentes, desde os mais pertos da goela até os da janela, passado o café e acendido o primeiro cigarro do dia, pude o perceber desconcertado com o próprio corpo, tinha esquecido como sincronizá-lo.
Observava tudo pelo espelho, evitando um confronto. Coçou a cabeça quatro vezes antes de começar a batucar na mesa de centro. Ele alternava entre suspiros breves e olhares fixos na janela.
Refugie-me no banheiro, tinha o chuveiro como alienador. Breve ópio de água quente que transcorria a alma. De volta ao real, de volta ao quarto.
Lá de dentro comecei a ouvir Edgar e seu contrabaixo. Ele o aconselhava, falava em tom grave, conseguia aliviar os suspiros. Fiquei inerte na cama e nesse momento os sons externos autofagiaram. O mundo só ouvia Edgar. Nunca o senti tão aflito, sua conversa parecia uma prece.
Abriu a porta do quarto. Queria falar que me amava.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Se eu te perguntasse sobre amor? Você me responderia tudo que já existe em livros velhos, grifados pela turva poeira. Responderia-me sobre sua sublimidade e pelos inúmeros desatentos decorrentes do encantamento. Falar-me-ia tudo que já li, interpretei e re-li. Porém digo-lhe que conhecer a mecânica de um vôo não significa que sabes voar. E eu? Estarei esperando que esqueça da teoria indigesta e infundada, que me causa náusea e não encanto. Estarei esperando no meu canto o seu decolar.

Viagem de Amar Gura

Mesmo tendo Deus remediado
Que aqui era reino do Diabo
De teimoso fizera até
De deixar a virgem de cabelo em pé
Que Deus o mandou em momento
Para sintir o tormento
Do povo do sertão

Nem chorou quando foi nascido
Prá se mostra parrudo sabido
Provando com Deus arreminado
Do que tinha determinado
De enfrenta o Leviatã de pé no chão
Contrário fosse trocaria o nome de menino Lampião
Já era noite quando eu re-li todos os seus cheiros. Lembro-me de toda efemeridade do nosso paladar. Ainda te escrevo. Duvido-me o espaço de tempo. Já que foi meu melhor passado, então ainda é presente. E por ser assim, prefiro que assim seja. Eternidade do sentir é lembrar de esquecer.
Preciso pegar no mancebo meu guarda chuva de memória antes do bule bater o meio dia. Antes de me revirar na cama pela oitava vez, antes de limpar meu ouvido viciado. Talvez um dia os limpe, e te conto o meu viver.
Sábado de manhã ela acordou sem me sentir, e num levantar da cama pude ouvir um suspiro incolor. Nessa lamentação cotidiana, continuou a fazer as mesmas coisas de sempre. Só que as coisas de sempre nunca haviam sido feitas como hoje. Ela se misturava á mobília como quem espera ter seu pó espanado.
E mesmo assim ela sorria pra mim.
Eu te queri.
Alumiaram de você não querê me desquerê!
Que se senti desquerido,
É vê a alma morrê.

Eu não te deslembrei.
Me intercedero que você se alembrô!
Que se senti deselembrado,
É vê o coração desabençoado.

Eu desatentei.
Foi quando você notô o desatento!
E se não fosse por você,
Morria por dismasia de desacalento.
Lamento-me pelas minhas respostas transfiguradas de covardia.
Meu espaço é breve. Nessa brevidade já me perdi. Atalhos de luz que queimaram as retinas de uma ilusória sinceridade. Se coubesse no intervalo de um suspiro, te respiraria por toda uma eternidade. E hoje, isso é o mais perto que eu consigo chegar de você.

Pé de queri

Um dia me contaram
que querê é pé de queri
nunca vi queri
nem sabor de queri
um tanto quanto nunca qui,
te querê
de querê
sem querê
te queri

Já eram sete da manhã quando os sinos da igreja me enjoavam o estômago.
Meu peito batia sereno e sentia uma brisa que parecia que vinha do mar.
Transcorria meus sentidos, tropeçava nas minhas inúmeras sublimações ilegítimas e irreais
A televisão parecia um acalento, passado um tempo já me satisfazia.
Soletrando o esquecimento, reescrevi todos os nossos lamentos, fomentos e tormentos perdidos no labirinto da razão.
Depois de tudo isso, levantei.